Um recuo democrático mundial
Considerar que o mundo estaria inevitavelmente caminhando em direção a uma universalização democrática seria não somente ingênuo, mas levemente arrogante. Como se o objetivo máximo de todo país fosse chegar lá, onde alguns já estão. Reconheço que não seja bem assim, e não gostaria de impor a existência de um único caminho viável a todos os povos.
Não possuo qualquer pretensão, e nem poderia, de decretar aquilo que diferentes sociedades deveriam ambicionar. Mas tendo feito essas ressalvas, gostaria de fazer uma última: argumentar que alguns povos possuem uma predisposição à democracia, enquanto outros não, também não seria um ato de arrogância? Acredito que sim. Isto é, se o autor do argumento fizer parte dos povos tidos como democráticos. Afirmar que alguns povos são capazes de se autogovernarem, enquanto outros não, além de ser uma grande afronta a qualquer coletividade, é um raciocínio responsável pela maior parte das brutalidades que preenchem o passado.
Assumindo então o caráter positivo da democracia, pretendo abordar aqui um assunto que deveria preocupar a todos: um possível recuo democrático mundial.
Momentos de avanço e de recuo democrático
O estudos Freedom in the World, Democracy Index e Democracy Matrix apontam todos para uma tendência de recuo democrático mundial. O número de países enfrentando um processo de desdemocratização é superior a aqueles que estariam se democratizando. A tendência, no entanto, não seria a transformação de democracias em regimes autoritários, mas sim em democracias menos eficientes ou em regimes híbridos que, por sua vez, exibem uma mistura de características democráticas e autoritárias.
Momentos de recesso democrático mundial, ou mesmo de recuo, não configuram raridade. Não é apenas no Brasil que a democracia segue um movimento pendular. Uma pequena retomada histórica confirma essa trajetória inconstante: a partir do século XIX até 1922 tem-se uma proliferação de democracias e regimes híbridos, seguido de uma estagnação do número de democracias até 1929, quando inicia-se uma fase de declínio democrático e ascensão do fascismo.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo se deleita com um segundo alvorecer democrático que perdura até 1962 e que é, mais uma vez, seguido de um período de recuo, até que em 1974 as democracias avançam novamente. Em 1995, pela primeira vez, existem mais democracias do que autocracias e, em 2017, o número de regimes democráticos atinge seu apogeu.
Mas se o século XXI parecia inaugurar uma fase de esplendor, essa impressão não prevaleceu por muito tempo. Contudo, o novo momento de recesso democrático apresenta certas particularidades. Chefes de Estado e de governo que exibem um desprezo pelas normas e instituições democráticas são democraticamente eleitos por cidadãos insatisfeitos com o desempenho do regime.
O esvaziamento do termo “democracia”
É difícil acreditar que alguns cidadãos não tenham apreço pela democracia. Afinal, conforme indaga Tocqueville em seu livro O Antigo Regime e a Revolução: “quem é o homem que, por natureza, teria uma alma suficientemente baixa para preferir depender dos caprichos de um de seus companheiros no lugar de seguir as leis que ele mesmo ajudou a estabelecer?”. No entanto, parece-me que a insatisfação é tamanha que muitos simplesmente se deixam convencer de que esses homens, que corroem as instituições por dentro, seriam os únicos dispostos a realizar a verdadeira “vontade do povo”.
Mais curioso ainda é observar que, mesmo se colocando como os únicos representantes legítimos do povo, essas “lideranças” não buscam aumentar a participação popular na política. Não, isso lhes desperta grande pavor. Na realidade, esses homens se entendem como a própria encarnação da vontade do povo, e as instituições democráticas seriam apenas empecilhos para a realização dessa vontade popular que, por sua vez, não passa de sua própria vontade individual transvestida de vontade geral.
Ainda é cedo para afirmar se esse período de recesso democrático seria realmente apenas um breve recesso ou uma nova onda de desdemocratização que deseja se estabelecer. Mas uma coisa é certa: seja um pequeno recesso ou um persistente recuo, o enfraquecimento democrático não irá ocorrer por meio de uma súbita imposição de um regime autoritário, mas sim por uma sútil subversão do próprio significado da democracia – o que, por sua vez, não é menos perigoso.
Eita! Esse negócio de líderes autoritários comendo pelas beiradas não tem como dar certo…
preocupante!