o autoritarismo que não nos deixa em paz

O autoritarismo que não nos deixe em paz

É uma ironia sem graça que o autoritarismo não nos deixa em paz justamente por nos ter convencido de que somos um povo passivo. É uma dessas situações raras e incômodas na qual causa e efeito parecem se sustentar mutuamente, produzindo a perpetuação de uma realidade sombria.

O autoritarismo é ao mesmo tempo um fardo e uma herança que acompanha a sociedade brasileira desde seus primórdios. Conforme ilustra Marilena Chauí, em “Brasil: mito fundador e sociedade autoritária”, “porque temos o hábito de supor que o autoritarismo é um fenômeno político que, periodicamente, afeta o Estado, tendemos a não perceber que é a sociedade brasileira que é autoritária”.

É autoritária pois quase todas as relações que edificamos são hierárquicas, a começar pela família com o “patriarca” como figura central. Claro, a sociedade brasileira não é a única marcada por relações desiguais, a nossa especificidade se encontra mesmo na nossa capacidade de invisibilização e consequente naturalização dessas desigualdades, somada a percepção de conflitos e contradições como sinônimo de perigo e desordem.

Alguns ainda acreditam, ou acreditavam até muito recentemente, que somos um povo pacífico, indiviso e ordeiro, um “povo cordial” que não enxerga diferenças de cor ou gênero. Não somos, e essa incapacidade de enxergar o que verdadeiramente somos é o que nos impede de nos tornarmos o que poderíamos ser.

Ao recusar que somos um país profundamente desigual, perpetuamos o estabelecimento de relações hierárquicas e autoritárias que terminam por ser replicadas na política.

Em seu livro, “Sobre o autoritarismo brasileiro”, Lilia Schwarcz resgata as origens desse autoritarismo que não nos deixa em paz já nos tempos dos senhores de engenho quando “a repetição dos gestos mais cotidianos mostrava-se crucial para edificar hierarquias”. Ou seja, as relações autoritárias não se afirmavam necessariamente na lei, mas no silêncio das práticas cotidianas.

Esse caminho continua a ser percorrido pela nossa sociedade ainda hoje, por meio também de práticas rotineiras que culpabilizam minorias, deslegitimam demandas sociais e ofuscam e naturalizam desigualdades.

É como em “Cem anos de solidão”, de Gabriel García Márquez, onde na cidade fictícia de Macondo os eventos parecem se repetir, como se o tempo fosse cíclico. Parece que o tempo dá voltas redondas e pouco importa se nos modernizamos ou se crescemos economicamente, acabamos sempre voltando ao princípio, e a promessa do “Brasil país do futuro” se torna eterna.

A sociedade brasileira é historicamente autoritária mas, segundo Schwarcz, isso não significa que devemos adotar uma visão passiva e aceitar isso como um determinante de um sombrio destino antidemocrático. Tampouco quer dizer que presidentes inaptos e arrogantes não devam ser repreendidos por sua inaptidão e arrogância. 

No entanto, se não modificarmos a forma como nos relacionamos e se continuarmos a aceitar uma condenável “cultura senhorial” que atua no sentido de naturalizar relações de desigualdade – seja econômica, racial ou de gênero – o vírus do autoritarismo continuará assombrando nossa vida política.

Os próximos personagens autoritários podem não vir a ser tão toscos e grosseiros quanto o atual, mas justamente por isso não serão menos perigosos.

4 thoughts on “O autoritarismo que não nos deixe em paz

  1. Mira

    […] saber mais sobre o autoritarismo no Brasil? Confira aqui nosso texto sobre o […]

  2. Regianne Casseb
    Regianne Casseb says:

    Excelente reflexão! Ótimas referências. E, sim, padecemos desse desconhecimento histórico, social, político e cultural. E até então, não houve um projeto que educasse nosso povo para autonomia de ideias.
    Parabéns pelo site! Está lindo na forma e no conteúdo.
    Desejo muito sucesso!

    1. Giovanna Macieira Rosario

      muito obrigada, regis! realmente parece haver um interesse no desconhecimento das nossas particularidades enquanto sociedade. Mas vamos trabalhando para mudar isso! obrigada pela reflexao!

  3. Mira

    […] a vaga em uma universidade constitui um direito inerente a certos grupos? Aparentemente sim, pois a reprodução de relações desiguais através dos séculos faz com que os males do passado sirvam …. Acostumados à exclusividade em espaços de poder, esses grupos entendem que o acesso à esses […]

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