“Não encosta no meu privilégio”
Uma das faces da revolta conservadora que parece ter se estabelecido como parte integrante da dinâmica política no Brasil e no mundo é o desconforto de certos grupos diante da ascensão de indivíduos historicamente marginalizados. A insegurança em relação a uma possível perda de privilégio, não pelo próprio rebaixamento, mas sim pela elevação do outro, parece produzir uma equivocada sensação de prejuízo. Afinal, “o gosto da carruagem seria diminuto, se todos andassem de carruagem”, conforme ilustrado em palavras machadianas.
Desse modo, se o privilégio pressupõe a existência daqueles que não o possuem, podemos entender o incômodo dos grupos dominantes diante da ascensão de outros grupos sociais por meio, por exemplo, de um sistema educativo um pouco mais igualitário e de ações afirmativas que buscam corrigir injustiças históricas – como é o caso das cotas. Conforme exposto em “Como as democracia morrem”, é difícil encontrar exemplos de sociedades em que grupos dominantes tenham aberto mão de seu status de forma pacífica. Esses grupos possuem a fúria de quem teme perder seus direitos, quando, na realidade, o que temem é a perda de seus privilégios.
Djamila Ribeiro exemplifica tal realidade de maneira ilustre em seu livro “Pequeno manual antirracista” ao descrever a reação majoritária das classes dominantes em relação às cotas universitárias – “mas isso não é justo, pois assim ‘as pessoas negras vão roubar a minha vaga`”. Ora, por acaso a vaga em uma universidade constitui um direito inerente a certos grupos? Aparentemente sim, pois a reprodução de relações desiguais através dos séculos faz com que os males do passado sirvam de promessa para o futuro. Acostumados à exclusividade em espaços de poder, esses grupos entendem que o acesso à esses locais lhes constituem um direito tão fundamental quanto a vida.
Dessa forma, esses indivíduos tendem a simplesmente concluir que a universidade é um espaço ao qual eles naturalmente pertencem, ou melhor, que pertence à eles. Esse pertencimento parece ser inerente, e por isso – ou por simples conveniência – costuma não ser questionado por quem dele se beneficia.
Paradoxalmente, é justamente o grupo que teme ter sua vaga “roubada” em uma universidade que se coloca como bastião da meritocracia. Mas vejam bem, que mérito existe em se certificar do próprio privilégio? E ousaria até mesmo dizer, de um privilégio à mediocridade. Enquanto exigimos de alguns grupos a excelência como credencial para acesso a espaços de poder, outros podem se dar o luxo de serem medianos e ainda sim assegurar sua presença nesses espaços de forma quase orgânica.
Explico: exigimos que indivíduos marginalizados sejam extraordinários se quiserem ser, por exemplo, advogados. Enquanto essa mesma posição é o destino “natural” de sujeitos que possuem o privilégio de poderem ser simplesmente bons, medianos ou mesmo ruins no que fazem. Ainda que também possam ser brilhantes, claro, a questão é que para eles isso não é posto como uma condição.
Se um grupo possui a presunção de pertencimento natural a certos espaços de poder – como universidade, política ou mercado – é porque nunca precisou justificar, racionalizar ou mesmo merecer o acesso à eles. Sempre foi natural e a verdade é que não existe mérito em conquistar aquilo que é tido como inerente à si mesmo.
Mas no final, não é tanto que o homem branco, por exemplo, não queira conviver com mulheres, gays ou negros – como eles mesmos já deixaram claro, muitos tem “até amigos assim”. Na realidade, o que incomoda é a ascensão desses grupos a espaços aos quais eles historicamente não pertencem.
Conviver com o porteiro negro, com a esposa mulher e com a diarista negra não é um problema, ter boas relações com esses grupos tampouco, desde que elas sejam desiguais. Agora, uma chefe de Estado mulher? Uma doutora negra? Um patrão negro? “Ah…na minha época as coisas não eram assim…que saudade dos velhos tempos…”.