Instituições não existem no vácuo: o papel das crenças

Instituições não existem no vácuo: o papel das crenças

Muito se fala sobre o papel das instituições enquanto guardiãs da democracia representativa. Contudo, de nada servem se forem esvaziadas de seu significado. As instituições democráticas importam na medida em que o público acredita nelas. Elas não persistem no vácuo e precisam ser sustentadas pela crença de que são necessárias e desejáveis.

A campanha de deslegitimação do sistema eleitoral estadunidense, arquitetada pela administração do presidente Donald Trump, após sua derrota no colégio eleitoral e no voto popular, constitui um exemplo sublime da importância das crenças para o bom funcionamento das instituições. 

A eleição presidencial nos Estados Unidos foi ilustrada como uma verdadeira cruzada pela democracia: se Trump lograsse um segundo mandato sem a sombra do impeachment – já que o Partido Democrata havia submetido o presidente a tal processo em 2019 – as consequências seriam desastrosas. Afinal, experiências recentes – como Viktor Orbán, na Hungria, e Narendra Modi, na Índia – confirmam que lideranças populistas tendem a causar estragos muito maiores após uma reeleição, que termina por servir como uma validação de suas atitudes antidemocráticas.

Apesar dessa cruzada pela democracia ter sido bem sucedida nas urnas, o verdadeiro desafio veio após a confirmação dos resultados. Ao ser derrotado, Trump iniciou uma campanha pela deslegitimação do processo eleitoral dos Estados Unidos. Assim, ele terminou por fazer exatamente o que disse que faria caso fosse derrotado: contestou o resultado. Mas os ataques reiterados ao sistema eleitoral com o objetivo de minar a confiança do eleitor já haviam se iniciado em 2016, quando o então showman concorreu pela primeira vez à presidência dos Estados Unidos e saiu vitorioso. Ou seja, o terreno para uma eventual contestação do resultado já estava sendo preparado há quatro anos. 

Apesar disso, a democracia estadunidense parece ter prevalecido, mas não em função da ausência de tentativas de subvertê-la, e tampouco em função da disposição de figuras do alto escalão do Partido Republicano em defendê-la. Preocupados somente com suas pretensões eleitorais, os políticos mais influentes do partido, como Mitch McConnell  – presidente do Senado –  e Ted Cruz – senador texano e aspirante à presidência dos Estados Unidos em 2016 – inflaram as alegações de Trump sobre uma grande conspiração democrata que teria sido responsável pela “grande fraude” que caracterizou essa eleição.

As alegações conspiracionistas não eram sustentadas por qualquer evidência empírica. Contudo, o objetivo não era convencer o judiciário em relação a uma suposta fraude, mas sim minar a confiança do público no que se refere ao sistema eleitoral e ao sistema político como um todo. As ações judiciais fracassaram, conforme esperado. O juiz Matthew Brann, ao dispensar a ação judicial requerida pela administração Trump na Filadélfia, escreveu em sua decisão: “nosso povo, nossas leis e nossas instituições exigem mais”. Exigem mais do que serem condenados ao ostracismo, e merecem mais do que permanecerem reféns das vontades e vaidades de um único cidadão.

Brann, que é filiado ao Partido Republicano, colocou seu dever enquanto servidor das instituições democráticas dos Estados Unidos acima de divisões partidárias. Situações similares se sucederam em Michigan, no Arizona e na Geórgia, onde oficiais do Partido Republicano, que sofreram enorme pressão do presidente dos Estados Unidos para simplesmente privar eleitores do direito de ter seus votos contabilizados, resistiram. Tratavam-se de oficiais republicanos sem grande projeção nacional, que foram pressionados por um presidente cujo objetivo era subverter as regras do jogo.

Na Geórgia, o secretário de estado, Brad Raffensperger, um republicano, foi pressionado a rejeitar votos legais que favoreciam os democratas e chegou a sofrer ameaças advindas do presidente Trump e de seus apoiadores. Aqui, faz-se importante ressaltar que a pressão para a rejeição de votos legais se sucedeu em estados e em cidades onde o voto do eleitorado negro foi decisivo para a vitória do Partido Democrata – como Filadélfia, Atlanta e Detroit. Em um país onde, durante anos, os cidadãos negros foram privados do direito ao voto; em 2020, esses mesmos cidadãos corriam o risco de terem seus votos anulados. 

Mas ao final, a democracia resistiu, porque indivíduos no nível local acreditaram em seu valor, muitos deles republicanos, alguns eram mesmo apoiadores de Trump. Contudo, a crença democrática superou o partidarismo. 

A lição que fica, inclusive ao Brasil, é que nenhuma democracia pode ser tida como dada pois uma forma de governo que se alicerça sobre as preferências dos cidadãos, se alicerça também sobre suas crenças. Se eles decidirem que a democracia não é mais desejável, então dificilmente existirá uma força maior capaz de sustentá-la. Uma democracia que pretende resistir a empreitadas antidemocráticas, precisa ser entendida como a única alternativa viável enquanto forma de organização do poder. Ela não deve ser somente preferível, é preciso que seja indispensável.

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