Hoje … morreu

Hoje … morreu

Hoje mamãe morreu, não foi ontem, foi hoje. Não foi a minha, talvez também não tenha sido a sua, mas morreu. E a alma parece ter levado consigo uma parte do ar que lhe faltou ao fim vida, porque por mais que não tenha sido a minha, ficou difícil respirar. E o corpo, quando deitou-se relaxado pela última vez na cama de um hospital lotado, parece que se somou à gravidade, porque de repente sobre o ombro, o peso aumentou. E os olhos quando fecharam parece que fecharam sobre céus, porque os dias ficaram mais escuros. As manhãs, as tardes e as noites já não fazem tanta diferença.

Não sei dizer quantas almas, quantos corpos ou quantos olhos fechados. Mas hoje mamãe morreu, não foi ontem, foi hoje. Não foi a minha, talvez também não tenha sido a sua, mas morreu. Morreu hoje, morreu ontem e morrerá amanhã. Ou melhor, morreu amanhã, porque ainda que se trate do futuro, é como se eu escrevesse sobre algo que já aconteceu. E eu não sei quando vai parar de morrer, o que torna o verbo um gerúndio. Um gerúndio odioso, canalha, brutal, sacana, tenebroso, repugnante, facínora, dissimulado, impiedoso e mau. Mau. Hoje mamães estão morrendo. Eu odeio esse gerúndio. Eu odeio esse verbo. E eu odeio odiar. Esse verbo maldito.

Eu também odeio falar de morte. Tenho medo. Morro de medo dela. Que ironia. Mas eu queria que ela nos deixasse pelo menos por um tempo. Não, eu queria que ela nos deixasse por um bom tempo. Eu queria que ela nos deixasse para sempre. Mas isso não é possível, então queria que ela fosse menos. Porque hoje ela é muita. O ar me falta. Falta ar pra quem vai. Falta ar pra quem fica. 

“Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem”. Não sei porque depende da mãe, depende das mães. Não foi a minha, espero que também não tenha sido a sua. “Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem”. Não sei porque foi ontem, hoje e será amanhã. Porque foi amanhã. Não sei porque não importa o dia, a realidade insiste em ser a mesma. A frase insiste em valer: “Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem”. Quem disse isso foi o personagem do filósofo Albert Camus, Meursault, um homem apático e indiferente, um estrangeiro em sua própria existência. Hoje somos todos estrangeiros, indiferentes tanto à nossa própria vida, quanto à do outro. Sem saber o dia certo da morte, e sem saber o dia em que ela acaba. Hoje mamães morreram. Ou talvez ontem, e amanhã também.

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