Desatenção: um agradecimento aos envolvidos
A convivência social torna-se, no mínimo, desafiadora para aqueles cujo tempo é parcialmente preenchido por ausências. Em uma conversa não presto atenção em metade do que é dito. Isso quando ela me interessa, porque quando não me interessa, eu… eu não sei, acho que nunca estive em uma, ao menos não que eu me lembre.
Como eu estou viva até hoje? Também não sei, mas agradeço aos carros que pararam na rua mesmo com o sinal aberto para não me atropelar. Agradeço também a um motorista de uber muito específico que peguei em 2018 e que ao invés de simplesmente me levar ao destino escolhido, me perguntou se eu queria mesmo ir para a cidade ao lado da minha. E é claro, um agradecimento aos meus pais e irmã, que desligaram o gás todas as vezes em que eu passei pela cozinha.
Também tenho muita sorte de estar hoje no Brasil, isso graças a um moço que devolveu meu passaporte depois de eu tê-lo deixado em um banco no aeroporto da França. Meu agradecimento aos achadores de cartão nas ruas e restaurantes do Brasil, por eu ainda ter algum dinheiro e nunca ter sido financeiramente roubada. Amaldiçoo, no entanto, o sujeito que furtou minha identidade que provavelmente estava no chão de alguma rua pois, em função disso, tive meu nome negativado devido a várias dívidas que contraí em lugares que nunca fui e quase perdi um emprego. Mas no fim, com os astros a meu favor, eu até me dei bem porque ganhei um dinheiro bom num processo contra uma dessas empresas e dinheiro nunca é demais né. Viu? Maldade nenhuma me atinge, pois já que vivo nas nuvens, vivo também mais perto de Deus. Gostaria de agradecer, contudo, aos outros oito sujeitos que acharam minhas outras oito carteiras de identidade perdidas, pois esses não contraíram dívida alguma, no limite a usaram para fugir em direção a algum país do Mercosul, mas ainda não tive notícias.
Estão vendo? A vida até que é boa para quem não habita nela, não é boa para quem convive com esse tipo de pessoa, claro. Outro dia mesmo, minha mãe e minha irmã estavam discutindo para ver quem iria ficar com o ovo que sobrou no meu prato. Quando dei por mim, as duas se olhavam incrédulas. É que eu tinha jogado o ovo fora enquanto elas decidiam quem o comeria.
É preciso ter muita paciência mesmo para conviver com esse tipo de gente, porque às vezes eu demoro demais para chegar em algum lugar. Não porque eu não sei o caminho ou porque me atraso. Sim, eu não sei o caminho e me atraso, mas não é exatamente por isso, mas sim porque às vezes acontece de eu esquecer uma sombrinha no metrô e ter que voltar quatro estações pra pegar porque tá chovendo. Se eu fosse um brasileiro com síndrome de vira-lata, provavelmente diria “nossa, mas a sombrinha só tava lá porque foi na europa”. Mas eu não tenho síndrome de vira-lata coisa nenhuma, afinal, como explicar o dia em que perdi cinquenta reais na rua, só me dei conta 15 minutos depois e, quando eu voltei, o dinheiro ainda estava lá? Ein? Como se explica? E como se explica o celular que eu deixei cair no chão da minha rua, dormi e, de manhã cedo, ainda estava lá? Não importa onde eu esteja, as coisas sempre se arranjam, pena que nunca sou eu a arranjá-las. Quem vive com a cabeça nas nuvens, definitivamente, está mais perto de Deus.
Gostou da crônica? Leia também: “E se fossem os homens que menstruassem?” e “Alguém desinventa o Linkedin”.