Crônica: O dia em que me transformei em jacaré
A chegada da vacina foi como um sopro de alívio e esperança. Depois de quase um ano vivendo em uma espécie de limbo, entre o céu da sociabilidade despreocupada e o inferno do confinamento, a promessa de uma vida onde toques e beijos seriam permitidos me cobria de conforto.
No momento em que as vacinas começaram a ser descarregadas dos aviões chineses, era como se caixas e mais caixas, pesadas pelo excesso de possibilidade, estivessem chegando ao Brasil. Eu assisti tudo pela TV, a Rede Globo – comunista – transmitia toda a glória dos chineses ao vivo e lágrimas escorriam dos meus olhos ingênuos, enquanto fantasiava um amanhã desprovido do medo de uma doença que, ainda não sei bem se realmente existiu.
Era uma segunda-feira, fazia um calor de 35 graus quando caminhei até o posto de saúde mais próximo para tomar a primeira dose da vacina, a primeira dose de esperança, sentimento que me fora roubado no último ano. Eu conseguia senti-lo mais uma vez, aquilo por si só já era uma espécie de milagre.
Após uma leve picada no braço esquerdo – coincidência? penso que não – eu estava 50% imunizada, só me restava aguardar algumas semanas para tomar a segunda dose e, finalmente, viver a vida sossegada. Retornei a minha casa, esquentei um almoço no microondas e sentei em frente a televisão. Só se falava na tal vacina – chinesa – que salvaria a vida dos brasileiros.
Após o almoço comecei a sentir um cansaço súbito, um sono incontrolável. Apaguei ali mesmo, no sofá. Acordei já era quase noite, minha cabeça latejava, eu nunca tive o hábito de dormir à tarde, talvez fosse isso. Levantei e fui ao banheiro, me olhei no espelho e foi quando me faltou o ar: minha pele estava esverdeada, um verde intenso. Será que foi o almoço? Talvez uma infecção alimentar? Mas era um verde tão estranho, eu nunca tinha visto alguém daquela cor em toda minha vida.
Coloquei minha mão sobre o espelho e aproximei meu rosto desconfiadamente. Quase cai dura no chão, meu olhos… meus olhos estavam ficando amarelos. Corri para pegar o celular e liguei para minha amiga Roberta. Naquele momento, minhas unhas já não eram unhas, eram garras! De toda maneira, consegui discar. “Oi Roberta, tudo bom?”. Fui surpreendida, do outro lado da linha escutava-se apenas grunhidos, um grunhido reptiliano.
Foi quando me ocorreu o que estava acontecendo. Lembrei que há alguns meses atrás o presidente havia alertado sobre os perigos da vacina, sobre a possibilidade das pessoas se transformarem em Jacaré. Eu não tinha dado atenção, o achava um verdadeiro desvairado. Jacarés? Tinha de ser muito estúpido para dar credibilidade a um homem desses. Mas enquanto assistia minha pele se ressacar e se transformar progressivamente em uma crosta verde escura, temia ter estado equivocada todo esse tempo.
Não era culpa minha, era culpa da Rede Globo e da Folha de São Paulo, que me fizeram acreditar na “ciência”. Mas naquele momento, enquanto minha pele ressecava e meus pés engrossavam, se transformando em patas, eu entendi a angústia de Gregor Samsa – o personagem de Kafka que se metamorfoseou em um inseto de gigante – e percebi que não havia nada a se fazer. Já era tarde para abandonar a Globo e assistir às lives semanais do presidente, ou me livrar da imprensa e me render aos grupos de Whatsapp. Ali, estava eu, me transformando em jacaré.
Nos meus últimos minutos enquanto ser-humano, fui acometida por uma rara epifania. Compreendi tudo, absolutamente tudo. Essa vacina não fazia parte somente de um plano chinês para dominação mundial. Os chineses estavam atuando junto aos ambientalistas que pretendiam salvar os jacarés da extinção. A solução? Transformar os seres-humanos desprezíveis, especialmente os brasileiros que destroem o pantanal e a amazônia, em répteis!
Eu, pretensiosa e arrogante, me achava esclarecida demais. Cercada de livros e jornais, zombei daqueles que alertavam para os perigos da vacina, para o complô dos ambientalistas e para o plano de dominação mundial dos esquerdistas. Agora, é tarde, me transformei em jacaré e a única habilidade humana que me resta é a escrita, logo ela, que incentiva o hábito esquerdista da leitura. Os jacarés não estão mais em risco extinção, os chineses estão prestes a dominar o mundo e aqueles que chamaram um presidente inquieto de demente amargam o destino que a insolência lhes reservou.
Gostou da crônica? Leia também “Um descanso no meio do mato” e “Mentiras cordiais”.