Cancelamento é tirania
O uso da violência pública a fim de reafirmar a própria pureza não é exclusividade da “ era do cancelamento ”. Desde a antiguidade, a execução sumária dos considerados “impuros” diante de uma platéia era uma forma de entretenimento, além de ser uma maneira de traçar uma linha bem distinta entre os “bons” e os “ruins”.
Guardadas as devidas proporções, me parece que continuamos a jogar os indivíduos tidos como corrompidos ou corrompedores aos leões. É como se ao traçarmos essa distinção clara entre “nós” e “eles” pudessemos garantir para nós mesmos e para a sociedade que nos vigia a todo instante na internet que nunca iremos ser como “eles”. Eu “cancelo” o outro para que o público tenha certeza de que eu não compactuo com as atitudes dele, de que eu não sou como ele e nunca serei. Mas é justamente essa dinâmica do distanciamento que nos impede de nos colocar no lugar do outro. Será que nunca fui Karol Conka em nenhum momento da minha vida? Será que nunca serei? Não sei dizer, mas considero prudente não colocar a mim mesma em um pedestal da virtude humana. Não se ter em padrões tão elevados é o que permite o erro em você, e no outro também.
Se colocar em um pedestal, te torna apenas um tirano hipócrita, incapaz de enxergar no outro um ser multifacetado, um ser que às vezes faz sofrer, mas que também sofre; um ser que às vezes julga, mas que também é julgado; um ser que às vezes massacra, mas que também é massacrado; que é algoz, mas que também é vítima. Definir um indivíduo apenas a partir de um defeito que foi observado não é somente covardia, é também prepotência.
Robespierre era chamado de “o Incorruptível” por seus apoiadores. O líder jacobino executou milhares de franceses durante o Reinado do Terror, seu objetivo era instaurar o medo a fim de promover uma república virtuosa. Mais uma vez, guardadas as proporções, a analogia com os “canceladores online” torna-se inevitável: os incorruptíveis da nossa era cancelam a fim de promover uma sociedade mais virtuosa. Bom, Robespierre terminou cancelado, ou melhor, guilhotinado. Não é o terror (e nem o cancelamento) que promove a virtude, ele promove tão somente a opressão do outro e, no mais tardar, de si mesmo.