Mentiras cordiais

Mentiras cordiais

Me perdoem os sinceros, mas a mentira é essencial. Ela é a base de toda boa educação. O sujeito educado é aquele que mente. Mas não estou falando de toda e qualquer mentira, me refiro apenas às mentiras cordiais.

Vejam bem, enganar ou trapacear para tirar vantagem do outro continua sendo malandragem. Contudo, uma mentirinha aqui ou ali para arrancar um sorriso ou um suspiro de alívio é marca de polidez. Existem certas perguntas que não requerem a verdade. Imaginem só, se toda e qualquer pergunta fosse seguida da mais nobre sinceridade.

Paulo desce para receber um pedido realizado por aplicativo. Paulo, como sujeito educado que é, abre o portão do prédio e cumprimenta o entregador enquanto estica a mão para agarrar a pizza: 

“Boa noite, tudo bem?” 

O entregador, Rogério, acometido por um surto repentino de sinceridade, ao invés de responder “Tudo” e entregar o pedido, replica: 

“Cara, eu não to bem não. Tô nessa já faz dois anos, só fazendo entrega. Não tem carteira assinada, não têm férias, a comissão é uma miséria e vocês não dão nem uma gorjeta. Antes eu tinha carteira assinada, agora o trabalho foi todo precarizado e vocês aí, rindo de uma orelha a outra porque dá pra pedir o almoço em um restaurante e a sobremesa em outro”

Enquanto isso, em algum outro lugar do Brasil, no mesmo horário, Kátia esbarra em Teresa, uma velha conhecida, na praça de alimentação do shopping. As duas conversam um pouco fiado e na hora de se despedir Kátia, uma típica mentirosa cordial, diz à Teresa: “Depois passa lá em casa pra gente tomar um cafezinho”. 

Dois dias depois, Teresa, acometida, assim como Rogério, por uma perda repentina de sensibilidade ao fingimento alheio, toca a campainha da casa de Kátia, que abre a porta e exclama: “Teresa”, diz meio sem graça, “tudo bem? o que é que você está fazendo aqui?”, ao que Teresa, a sincera, responde: “Estava passando na rua e decidi vir tomar aquele cafezinho que você propôs”. 

Quanta inconveniência, não é mesmo? Todos sabem que “depois passa lá em casa pra gente tomar um cafezinho” é apenas uma forma rebuscada e cordial de dizer “tchau, até a próxima esbarrada do acaso”.

Temos ainda o caso de Fabrício, que está almoçando na casa da sogra pela primeira vez. O prato do dia? Bacalhau. Após Fabrício dar a primeira garfada, Maria, mãe de Gabriela, sua noiva, lhe pergunta: “E aí? Tá gostoso?”. Ao passo que Fabrício, acometido pela epidemia da sinceridade inadequada, responde: “olha, o arroz até que está soltinho, mas o bacalhau parece que saiu direto do sal e não da água. Da próxima vez, pode me chamar que eu venho mais cedo ajudar a dessalgar o peixe”. Dois anos depois, Fabrício se casou… com Roberta, que era órfã de mãe.

E não me venham dizer que toda sinceridade é bem-vinda, se proferida com delicadeza. Imaginem este cenário: Marta recebe um presente de Natal de sua cunhada, Joana. Ao abrir o embrulho, Marta verifica que trata-se de uma daquelas caixas de som para celular que vendem no centro da cidade e que grudam na parede do banheiro, mas que não duram uma semana. Marta que é delicada e sincera, chama Joana para o canto e diz “Querida, eu sei que essa caixinha de som custa 30 reais no centro da cidade, você e meu irmão estão tendo problemas financeiros? Porque eu e o Maurício ficaríamos muito felizes em ajudar”. Marta só foi ver o irmão de novo no casamento da filha, digo, da filha dela, porque para o casamento da filha dele, ela não foi convidada.

Estão vendo? Mentira é sinal de boa educação. Avisem ao Lulu Santos, gente fina, elegante e sincera é uma contradição em termos. Existem certas regras de polidez subentendidas, e a mentira é a mais primordial delas, quem disser o contrário está mentindo – e que ótimo! É com pequenos passos que se aprende a andar. 

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