Crônica: Dinheiro não importa

Crônica: Dinheiro não importa

“Dinheiro não importa”, nunca disse o pobre. A afirmação da irrelevância do dinheiro é sempre proferida por aqueles que o possuem. Em geral, com o intuito de demonstrar desapego pelas coisas materiais, talvez até uma certa liberdade frente aos escravos do sistema. 

Essa declaração de independência em relação ao dinheiro é, por vezes, uma asserção de pretensa superioridade. “Vocês ainda não entenderam aquilo que realmente importa na vida”, disse a pessoa que nunca pagou uma conta de luz. “Eu, felizmente, já compreendi que aquilo que é essencial não tem preço”. Frequentemente, essas pessoas proclamam que o que importa são experiências, e não bens, coisas ou tralhas. O que importa é aquele mês de janeiro no litoral da Bahia que, aparentemente, não tem preço. Isto é, se a pessoa caminhar a pé até lá e contar com a generosidade alheia para se alimentar na ida, durante e na volta.

Vejam bem, eu não estou dizendo aqui que dinheiro é a coisa mais elementar e importante na vida de todos os seres-humanos. Se eu pensasse assim, definitivamente não estaria escrevendo crônicas. Também não estou fazendo essas afirmações a partir da perspectiva de quem sabe fazer dinheiro e exige dos outros a mesma sabedoria. Todos percebem que essa não é uma habilidade comum entre cronistas. Além disso, também não passo necessidades porque, se passasse, mais uma vez: não escreveria crônicas.

Contudo, é justamente esse o ponto no qual pretendia chegar: “dinheiro não importa”, para quem tem. Afinal, nós só nos desapegamos daquilo que possuímos. Um pobre se desapegar do dinheiro seria uma contradição em termos. Imagine só, eu sair por aí declarando que me desapeguei dos barcos que nunca tive. 

“Olha aqui Nina, eu não acho que barcos sejam importantes”

“Também não acho, mas por que você está me contando isso? Nunca disse que barcos eram importantes. Nunca nem disse que gostava de barcos, me dão enjôo”.

“Porque gostaria que ficasse claro que, apesar de não poder comprar barcos, eu não os compraria, ainda que pudesse”.

E, assim, o mundo segue girando, os barcos seguem ao mar, e essa minha nobre declaração não altera em nada a indústria naval. É tão irrelevante quanto a confirmação da irrelevância do dinheiro nas bocas de quem quer que seja. Dizer que dinheiro não importa não o torna desimportante para quem paga contas de luz, supermercado e IPTU. É quase uma afronta ao “reles mortais” que ainda não se desapegaram dessa notória convenção humana que permitiu a superação do escambo.

Por fim, é importante que fique claro, esta não é uma irônica declaração de amor ao sistema no qual existimos. Se o sistema fosse outro, os cronistas seriam, certamente, um dos grandes favorecidos. Este texto é apenas uma forma de exteriorizar brevemente a constatação de que a célebre frase “dinheiro não importa”, geralmente é proferida ao final da tarde, após algumas taças de vinho importado e antes de uma boa noite de sono sob o ar-condicionado. 

One thought on “Crônica: Dinheiro não importa

  1. ANTONIO HENRIQUE DO ROSARIO
    ANTONIO HENRIQUE DO ROSARIO says:

    Ótimo

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