Eleições Municipais: essa foi a vez das mulheres?
Como as situações de opressão operam antes durante e depois das eleições
As eleições do último domingo foram marcadas pela conquista de diferentes minorias em cargos legislativos e executivos em âmbito municipal por todo país. Sim, devemos celebrar a chegada de mulheres trans, negras, mães, travestis, inter-sexo e jovens lideranças em todo país. O número de mulheres nas câmaras das maiores capitais cresceu 43,1%. Porém, o quadro não sofreu alterações substanciais nas prefeituras. Apesar de sermos 52% da população, apenas 12% das pessoas eleitas em primeiro turno para prefeituras são mulheres. A sub-representatividade das mulheres indígenas também deve ser lembrada, apenas uma foi eleita para prefeita em todo país, Eliselma Silva de Oliveira, conhecida como Lili, reeleita em Marcação, Paraíba.
Além disso, dados apresentados pela plataforma Gênero e Número mostram que nenhuma capital brasileira chegou ao total de 50% de vereadoras eleitas, sendo o melhor caso o da cidade de Porto Alegre, onde a representatividade atingiu o percentual de 31%. O pesquisador e doutor em demografia José Eustáquio Alves chama atenção para o fato de que, embora mais mulheres tenham sido eleitas para as câmaras municipais em 2020 em comparação a 2016, o Brasil ainda está longe da paridade de gênero na política. Se continuarmos nesse ritmo, isso irá acontecer apenas em 56 anos! A igualdade de gênero para as prefeituras, por sua vez, é esperada somente para daqui três séculos!
Assim, apesar do otimismo que este momento nos traz, seguimos vigilantes, para que Erika Hilton, primeira trans e negra eleita em São Paulo; Benny Briolly, primeira travesti eleita em Niterói, e Carolina Iara, primeira inter-sexo co-vereadora eleita também em São Paulo, sejam as primeiras e não as últimas a ocuparem seus cargos. Por isso, se faz necessário que não nos esqueçamos o trajeto árduo e corajoso que cada uma delas percorreu para que, apesar dos diversos percalços, obtivessem sucesso em suas candidaturas.
A violência política de gênero, em sua forma elástica e abrangente, opera de formas distintas durante toda trajetória política feminina e é ainda a maior inimiga das mulheres que almejam cargos políticos, das que se candidatam e também das que se elegem. Essa traiçoeira companhia, calcada nos alicerces de uma estrutura patriarcal, só poderá ser extirpada a partir da ampliação de nossa representatividade e da forte atuação da sociedade como um todo, no combate ativo e diário a situações de opressão culturalmente aceitas e replicadas.
É necessário que aqui fiquem claras as formas que a violência política de gênero assume. A batalha começa antes da eleição, quando mulheres precisam reunir coragem para enfrentar o estigma de que o espaço político é “coisa de homem”. Afinal, se ao encarar o corpo de representantes, verifica-se uma prevalência discrepante da imagem masculina, é natural que a política se torne um ambiente hostil e pouco convidativo para qualquer indivíduo que não pertença a essa categoria.
Entretanto, o problema não se resume a sub-representação. Não devemos nos esquecer, ainda, das dificuldades em conciliar a carreira política e a vida particular, afinal a dupla jornada e a maternidade, graças ao machismo, costumam sobrecarregar o gênero feminino.
Quando essas barreiras iniciais são vencidas e iniciam-se as campanhas, novas violências são relatadas pelas candidatas que disputam algum cargo político, como intimidações, ameaças, falta de apoio e financiamento para suas candidaturas. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Marielle Franco chama atenção para uma das violências de gênero contemporâneas mais comuns: os ataques virtuais. De 142 mulheres negras candidatas, monitoradas no pleito deste ano, 78% relataram já ter sofrido esse tipo de agressão.
Silenciamentos constantes, perseguição, agressões verbais e físicas, ameaças à vida das eleitas e de suas famílias e abusos dos mais distintos tipos são relatados por representantes eleitas. Um dos casos mais emblemáticos de violência de gênero é o de Marielle Franco, executada no dia 14 de março de 2018, atingida por 4 tiros na cabeça no centro do Rio de Janeiro. 981 dias após o assassinato de uma representante do povo legitimamente eleita para uma casa legislativa, o caso segue sem respostas.
Alimentadas pela esperança que os resultados das eleições nos trouxe, seguiremos em vigília por cada uma das mulheres eleitas neste país. Acompanharemos seus mandatos, cobraremos condutas condizentes com os direitos das mulheres e zelaremos pela integridade física e psicológica de cada uma delas. É nosso dever ocupar os canais oficiais das Prefeituras e Câmaras, assim como as redes sociais e participar ativamente de audiências públicas. Fazer política diariamente é avisar ao patriarcado que, mesmo lentamente, estamos movendo as estruturas em todos os níveis possíveis. Não retornaremos ao lugar onde estivemos um dia.
Quando afirma-se que representatividade importa
A maior presença das mulheres na política institucional não é somente uma questão de números e proporções, é também um argumento por uma democracia mais responsiva e representativa dos interesses e necessidades de todo o corpo de cidadãos. Afinal, uma democracia que reflete unicamente as preferências e as perspectivas de uma parcela da população dificilmente corresponderá às expectativas mínimas de seu público.
Não por acaso, a crise das democracias liberais é comumente compreendida como uma crise de representatividade. Ou seja, os cidadãos dessas democracias votam e vocalizam suas preferências, mas ao final, em virtude de diversos dificultadores – como os elencados na seção anterior – o corpo de representantes eleitos termina por não refletir a pluralidade de valores, opiniões e interesses que caracterizam as sociedades contemporâneas.
O déficit da presença feminina na política assinala não somente a sub-representação das mulheres na vida pública, mas indica uma ausência de espaço dedicado às minorias de forma geral. Afinal, as mulheres constituem a única minoria que existe em qualquer país do mundo. Assim, a sub-representação delas na política institucional é um excelente indicador do grau de inclusão ou exclusão das minorias no país estudado em comparação com outros. Ou seja, se o Brasil possui índices vexaminosos no que diz respeito à representatividade feminina e a violência política de gênero, não surpreende que essa ausência se estenda, ainda em maior grau, às populações negras e indígenas.
Nesse sentido, diante de um corpo político pouco representativo, não surpreende que o engajamento democrático termine vencido pelo desinteresse. Quando os cidadãos compreendem a política como um domínio isolado de suas vidas, como um espaço ao qual eles não pertencem e que não lhes diz respeito, é absolutamente natural que a indiferença prevaleça e, quando ela prevalece, pouco importa a democracia ou a qualidade dela, uma vez que o público, de maneira geral, não é contemplado pelos resultados que esse sistema produz.
Aqui, a representatividade não diz respeito apenas à quem foi eleito, mas ao que defendem os eleitos. Tão importante quanto votar em mulheres, é o comprometimento em acompanhar seus mandatos, cobrando das diplomadas uma postura de responsabilidade na busca pela igualdade de gênero e pela representação dos interesses e direitos das mulheres.
A defesa de uma democracia mais representativa e mais igualitária não consiste em um simples esforço para alterar o status quo, mas se refere a um empreendimento que vai ainda mais além e que traduz-se na busca pelo resgate democrático. É preciso que mulheres e grupos ainda mais sub-representados, como é o caso das mulheres negras, se façam presentes na política institucional justamente para socorrê-la. Não é a política que, por obséquio e delicadeza, permite que mais mulheres e outras minorias se façam representadas. São as mulheres que, gentilmente, se mostram capazes de garantir a própria existência da política.
Afinal, é diante da apatia que a retórica antipolítica se sobressai. A política da destruição e da negação prevalece somente quando o público não se interessa pelo que está sendo destruído e o desinteresse, por sua vez, impera justamente quando a representação fracassa.
Texto escrito por Camila Braga e Giovanna Macieira Rosário.
Leia também: Lugar de mulher: a violência política de gênero.
Sensacional reflexão! É triste, porém, ver que, apesar do tanto que caminhamos, falta muito para a paridade de gênero na política.