“Lugar de mulher”: a violência política de gênero
Representatividade não é tudo, mas importa.
A história da participação feminina na política brasileira começa a ser descrita, muitas vezes, a partir da chegada da primeira mulher à Câmara dos Deputados, em 1933. Nosso primeiro instinto, quando falamos sobre gênero e política, é supervalorizar cargos governamentais na construção de uma sociedade mais equânime. É inquestionável que esta é uma conquista significativa, visto que pesquisas atuais têm mostrado que mulheres no poder tendem a dar maior atenção a grupos socialmente mais vulneráveis, além de buscarem maiores investimentos em saúde e bem-estar.
Contudo, não podemos nos esquecer que, apesar da representatividade ser importante, ela não traz a garantia da observação e manutenção dos direitos femininos. Tampouco, sozinha, conseguirá alterar as estruturas de uma sociedade historicamente patriarcal.
O que queremos afirmar aqui é que a representação política, por si só, não assegura que os direitos das mulheres serão respeitados socialmente. Por isso, abrimos este texto com a frase “representatividade importa, mas não é tudo”. Poderíamos dizer que é um ponto de partida valiosíssimo, mas não um ponto de chegada. Representatividade é uma conjuntura e não uma garantia. Mas para que não pairem dúvidas sobre nosso posicionamento, reafirmamos: representatividade importa, sim!
Assim como como na atualidade, esforços conjuntos foram necessários para que uma mulher ganhasse o espaço público, se tornasse elegível e, finalmente, fizesse parte do sistema legislativo. Seria impossível não falarmos aqui do movimento sufragista feminista brasileiro do início do século XX, liderado por mulheres como Leolinda Figueiredo Daltro, professora, indigenista e fundadora do Partido Republicano Feminino, que por sua luta pelo direito de participação política, ficaria conhecida como “a mulher do diabo”.
Anos de lutas, discussões, manifestações e forte pressão pública foram necessários para que o caminho estivesse aberto e Carlota Pereira de Queiroz se tornasse a primeira mulher a adentrar a Câmara dos Deputados (no sufrágio de 3 de maio em 1933), eleita para fazer parte da Assembleia Nacional Constituinte de 1934. Nascida em uma família abastada de fazendeiros paulistas, Queiroz foi professora e médica, notadamente reconhecida por seus pares e com importante atuação durante a Revolução Constitucionalista de 1932. Em seu primeiro discurso como parlamentar, pronunciado em 13 de março de 1934, proferiu as seguintes palavras “(…) porque nós, mulheres, precisamos ter sempre em mente que foi por decisão dos homens que nos foi concedido o direito de voto”.
Em um contexto notadamente machista e onde as situações de opressão eram cotidianas, Queiroz, agradece aos homens presentes por darem às mulheres a oportunidade de votarem e serem eleitas. Sua fala não é um mero diagnóstico errôneo. Entendemos muito mais como um “discurso de sobrevivência”. Queiroz era voz dissonante. A única, em meio a 213 homens. Agradar aos demais deputados presentes nos parece não só a senda mais inteligente, mas a única segura àquela época.
O itinerário da representatividade feminina, aberto em 1933, não encontrou caminhos facilitados. Ao contrário, de lá para cá, as situações de opressão na política se multiplicaram, ganhando novas roupagens e disfarces. Assim, avanços insuficientes foram observados desde o último século. A Assembléia Nacional Constituinte, instalada na legislatura 1986-90, era composta por apenas 26 (vinte e seis) deputadas federais, 5,7% do total, sendo que a maioria das eleitas não tinha inserção no movimento feminista. O percentual de participação feminina na política não teve alterações suficientes, mesmo após o período de redemocratização no país e apesar da Lei nº 9.504/1997 (artigo 10, parágrafo 3º), que exige uma quantidade mínima de 30% de candidaturas femininas.
Alguns dados merecem nossa atenção. A eleições de 2016 levaram ao cargo de prefeitas 641 mulheres, o que representa 11,57% do total das cidades brasileiras. Apenas 1 estado da federação tem hoje em seu executivo uma presença feminina, o Rio Grande do Norte, chefiado por Fátima Bezerra (PT). No legislativo federal, 77 dos 513 eleitos para a Câmara são mulheres, uma representatividade de 15%. Já no Senado, a bancada feminina conta atualmente com apenas 12 integrantes.
Diante desse cenário, paira sobre nós muitos questionamentos, mas poderíamos resumi-los em uma breve questão: por que mulheres continuam sendo pouco eleitas em pleno século XXI?
Responder a essa dúvida não é tarefa simples e poderíamos elencar inúmeros sistemas de opressão que operam como dificultadores, antes, durante e após as eleições. O estigma de que o espaço político é “coisa de homem”, a dificuldade em conciliar a carreira política e a vida particular (devido à dupla jornada), a falta de apoio e financiamento, perseguições, ameaças e agressões são alguns dos tipos de violência política de gênero que tentam afastar mulheres dos espaços de poder.
A violência política de gênero
A maior presença da mulher na política institucional – ainda que em número insuficiente, convém ressaltar – é uma conquista sempre recebida com violência. Isso ocorre porque ao ocuparem as instituições políticas, as mulheres o fazem em um contexto cultural que não reservou esse lugar para elas. Esse espaço político que as mulheres vêm ocupando esteve historicamente reservado aos homens, que em função das relações de desigualdade que se perpetuaram ao longo do tempo, entendem o pertencimento às instituições de poder como um direito inerente e exclusivo à natureza masculina.
Toda e qualquer conquista da mulher produz uma reação violenta daqueles que se sentem prejudicados e usurpados pela perda de privilégios que são entendidos como direitos tão fundamentais quanta o direito à vida. Por onde os pés das mulheres passam, passam sempre pisoteados. Mas ainda assim, passam. Na política institucional, não é diferente.
Aqui, faz-se importante ressaltar que a ênfase dada à política institucional se faz pertinente porque na política das ruas e das comunidades, as mulheres sempre estiveram fortemente presentes. Contudo, no que diz respeitos a cargos políticos, a ocupação desses pelas mulheres é uma conquista incipiente que tem despertado reações violentas.
Segundo um estudo realizado em 2016 pelo União Interparlamentar que abrangeu 39 países, cinco regiões e 47 parlamentos, a violência política de gênero é um fenômeno global que se manifesta de diversas formas. Das parlamentares entrevistadas, 81,1% já sofreram violência psicológica em função do trabalho, enquanto 78,1% já presenciaram o ato ser cometido contra alguma colega parlamentar; 21,8% já foram vítimas de violência sexual, enquanto 32,7% presenciaram uma colega parlamentar sendo vítima de tal violência; 25,5% sofreram violência física, enquanto 20% presenciaram o ato ser cometido contra uma colega parlamentar; por fim, 32,7% das entrevistadas foram vítimas de violência econômica, enquanto 30,9% presenciaram uma colega sendo a vítima.
Essa agressividade direcionada a mulher parlamentar pode ser compreendida como uma reação ao crescimento da taxa de representatividade das mulheres nos parlamentos. Segundo dados divulgados também pela União Interparlamentar, em 2018 a média global da presença feminina em parlamentos era 24.3%, o que representa um avanço expressivo, ainda que insuficiente, tendo em vista que em 1995 a média global era 11.3%.
O Brasil, contudo, possui um longo caminho a percorrer se quiser um dia estar em conformidade com essa média. Conforme exposto anteriormente, o país possui uma taxa vexaminosa de apenas 14.8% de presença feminina em ambas as casas legislativas nacionais – sendo que, dentre essas, apenas 2% são negras. A porcentagem que constitui um recorde histórico da representatividade feminina no parlamento brasileiro apenas coloca o Brasil dentre os piores avaliados no que se refere a presença da mulher na política institucional, estando 10 pontos percentuais abaixo da média mundial.
Diante dessa realidade preocupante, não surpreende que a violência política de gênero no país seja uma prática culturalmente autorizada no ambiente parlamentar, uma vez que não sofre punição. Um estudo realizado pela professora da Universidade Federal da Paraíba, Tássia Rabelo de Pinho, expõe a inércia do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados diante de casos que se configuram como violência política de gênero. Dentre os sete casos analisados pela professora, todos foram arquivados, o que não surpreende se levarmos em consideração a quase ausência de mulheres no Coética que, por sua vez, é reflexo de sua sub representação na própria Câmara.
Nesse sentido, o próprio déficit da presença feminina no parlamento brasileiro contribui para que a violência culturalmente autorizada e perpetrada contra as mulheres que conseguem ascender na política institucional não seja penalizada. Diante desse cenário, convém reafirmar que a representatividade importa, contudo, o problema é ainda mais profundo. Afinal, ainda que as mulheres se fizessem presentes de forma igualitária em relação aos homens na política institucional, números não serviriam como garantia contra a violência política de gênero; essa prática cultural que impede as mulheres de exercerem seus direitos e funções públicas de maneira plena e justa.
Escrito por Camila Braga e Giovanna Macieira Rosário.
Leia também: A objetificação feminina nas redes sociais e a violência doméstica e “Não encosta no meu privilégio”.
Estamos próximos às eleições municipais e este texto é um referencial reflexivo e valioso, perante o momento atual. Parabéns pela excelência no exposto. Que cada vez mais, mulheres compartilhem conhecimento e nos acrescentem tanto, como vocês fizeram diante deste texto.