A santificação da intolerância

A santificação da intolerância

A santificação da intolerância talvez seja a mais notória marca do Brasil contemporâneo. Parece-me que, em um país fundamentalmente dividido entre bons e maus, a intolerância assegura a alguns a certeza de que não irão se contaminar com a impureza do outro.

É preciso, a todo momento, se portar agressivamente para com o outro porque somente assim seria possível garantir aos próximos a própria castidade. Aqui, a grande inquietude se encontra na satisfação do próprio narcisismo e na reafirmação de uma suposta moralidade cuja defesa se faz apenas na esfera pública. O âmbito do privado serve apenas para a condenação do outro.

Um aceno ao diálogo ou a compreensão sinaliza a fraqueza daqueles que ousam encarar os olhos do inimigo. A intransigência se tornou a maior das virtudes, sinônimo de integridade. O importante é preencher todos os requisitos que garantem a filiação a um grupo homogêneo e coeso. 

Somente nesse contexto faz-se possível a condenação absoluta dos outros, ainda que esses outros sejam frágeis ou vulneráveis. Não se deve encarar verdadeiramente o outro lado. Os inimigos são apenas massas amorfas, sem rosto, sem idade e sem alma – porque estão do outro lado da linha, merecem punição impiedosa. A falta de piedade seria sinalizadora de firmeza e segurança. 

Contudo, torna-se até estranho falar sobre a piedade de pessoas cujo perdão não foi solicitado, e não foi solicitado justamente porque não estão em posição de concedê-lo. É como se eu decidisse ser impiedosa com o Festival de Cinema de Cannes pelo déficit da presença feminina nas premiações e, dessa forma, aderisse a um boicote à próxima edição. Ridículo, não? Afinal, não fui convidada.

São ridiculos também todos esses que constroem pedestais de moralidade que acomodam apenas um, ou poucos. É a personalização do mérito e da moral. Mas vejam bem, não é porque a régua de moralidade foi concebida para acomodar um grupo específico que ela não será imposta aos outros. Essa régua é o instrumento que permite a alguns um breve, mas prazeroso, sentimento de superioridade – é assim que eu me sentiria se fosse capaz de convencer a mim mesma que não comparecerei à Cannes apenas por convicção.

Uma vida que se encobre de sentido apenas em comparação com o outro. Talvez por isso a preocupação excessiva com a vida alheia. Em um mundo desencantado, é preciso encontrar os demônios em terra. As grandes cruzadas contemporâneas se assemelham as aventuras de Don Quixote que apenas encontrava sentido na luta contra gigantes que, na realidade, não passavam de moinhos de ventos. 

Essa cruzada dos intolerantes parece servir como remédio para a melancolia que o mundo desencantado da modernidade desperta em alguns. Assim, os indivíduos se integram novamente em tribos ou clãs antagônicos para tentar atribuir à própria existência alguma razão mística e profunda de ser.

Uma pena, no entanto, que, no Brasil, não se golpeiam apenas moinhos de ventos. Se a realidade fosse essa, os únicos lesados seriam esses sujeitos delirantes que despertam em mim pouca simpatia. No Brasil, investe-se também contra pessoas, contra indivíduos reais e, não raro, contra crianças. 

Foi nesse cenário que a intolerância se tornou sinônimo de caráter firme, enquanto a incapacidade de empatia representa um compromisso com valores supremos, e a agressividade sinaliza a solidez das próprias nobres convicções. Um mundo imaginário, feito sob medida para aqueles cujo tamanho do ego não ajusta-se mais à realidade. 

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