Uma revolta cultural em nome dos valores?
As possíveis causas da eleição do atual presidente do Brasil só poderiam ser inúmeras. Um acidente desastroso como esse carece de explicações que talvez escapem à cognitividade humana. Não obstante, ousarei refletir neste texto sobre um fator que considero ser detentor de ao menos uma parcela de culpa nessa fatalidade que se impôs sobre o país em 2018 – apelidarei esse elemento de “revolta cultural”.
Essa revolta cultural sobre a qual pretendo escrever é produto de um certo desconforto referente a um mundo que se transformava de maneira acelerada para alguns, apesar de que após séculos de inércia, qualquer mudança, por mais rápida que fosse, era lenta para aqueles que tinham pressa. E no Brasil, muitos têm pressa. A pressa é, não somente apropriada, mas indispensável a nossa realidade.
A força que parece mover o núcleo duro de apoio do atual presidente é de cunho moral. Dificilmente insatisfações de caráter material levariam indivíduos a se prestarem o papel de se aglomerararem semanalmente, em meio a uma pandemia, para manifestar apoio a um sujeito comprovadamente falível – vejam bem, estou sendo moderada, pois somos todos falíveis, mas a falibilidade do presidente reflete ainda no fato dele se considerar infalível e, dessa forma, terminar por condenar o país ao caos diário.
Seria preciso delimitar espaços
A insatisfação que move a militância do presidente está relacionada a emergência de certos grupos sociais historicamente marginalizados e de certas pautas políticas tidas como “progressistas”, que até pouco tempo atrás não eram nem sequer postas em debate.
A ascensão – ainda que limitada – de certos grupos em espaços de poder aos quais eles historicamente não pertenciam produz uma enganosa sensação de prejuízo em grupos que detinham exclusividade a esses espaços. O incômodo do atual presidente, enquanto ainda “servia” como deputado federal, em relação às suas colegas mulheres, por exemplo, é notório e reações violentas não foram raras.
No entanto, esse não é um fenômeno exclusivo ao Brasil, Paul Krugman – Prêmio Nobel da economia – escreveu um artigo em 2018 refletindo sobre o papel do ressentimento racial e cultural para a eleição de Donald Trump. De acordo com Krugman, a tese da ansiedade econômica para esclarecer a chegada de Trump ao poder é falha, afinal, é perfeitamente possível que o voto em Trump e o sucesso econômico andem juntos.
Segundo o economista, o que melhor explicaria o sentimento de raiva que move os eleitores mais fervorosos do presidente americano seria a insatisfação diante de um país que se transformava rapidamente e que, dessa forma, impunha a alguns o medo da perda de certos privilégios cujo simples fato de ser homem e branco concediam.
O incômodo das novas pautas e a revolta cultural
Esse mesmo sentimento de incômodo e medo é produzido pela ascensão de pautas entendidas como “progressistas” no espaço público – como igualdade racial, igualdade de gênero, liberdade sexual, proteção ambiental e direitos humanos. Quando essas pautas finalmente alcançaram o debate público, produziram um deslocamento de valores “tradicionais familiares”, o que mais uma vez produziu uma sensação de prejuízo aos grupos que se identificavam com esses valores.
Vejam bem, é perfeitamente democrático que indivíduos reivindiquem valores conservadores. O problema está em quando um candidato à presidência se aproveita desse sentimento de perda para defender a superioridade moral de um grupo específico e para deslegitimar qualquer outro grupo que não se identifique com esses valores e que deseja avançar outras pautas.
O grande perigo está na contestação do próprio direito de existência de qualquer oposição ou dissenso. Nesse momento, a política passa a se desenrolar no terreno moral, e embates que poderiam ser perfeitamente aceitáveis ganham um contorno fatalístico, como se a simples existência do outro ameaçasse a minha própria existência. Assim, aquilo que era considerado desconforto é transformado em ódio e as consequência do ódio são… nós estamos vendo quais são, sintam-se a vontade para completar a frase.