A objetificação feminina nas redes sociais e a violência doméstica
O corpo feminino como fator de valorização da mulher
Cada vez que a mulher conquista a liberdade em algum aspecto, seja ela sexual, política ou social, parece que a sociedade encontra uma nova maneira de acorrentar o feminino a regras e sistemáticas restritivas. Se antes a valoração de uma mulher relacionava-se à necessidade de ela se manter virgem antes do casamento, realizar funções exclusivamente domésticas ou não se vestir de modo supostamente adequado, agora o critério ganha novo foco: seu corpo.
A valoração da mulher permanece sendo baseada em seu corpo enquanto instrumento de satisfação masculina. Diante do padrão de beleza ainda muito incentivado, mantém-se a raridade em apreciar a mulher por sua personalidade, inteligência, identidade e capacidade, se a ela não se atribuir uma aparência magra, dita bonita ou atraente sob a ótica de um padrão estipulado socialmente.
Nesse sentido, Naomi Wolf, em seu livro “O mito da beleza”, nota que “os homens são estimulados visualmente pelo corpo feminino e são menos impressionáveis pela personalidade da mulher porque desde cedo são treinados para reagir assim.”
De fato, desde cedo o olhar dos homens é instruído para destacar as características físicas da mulher, imprimindo pouca importância à sua intelectualidade e personalidade. Os homens aprendem a ver a si mesmos como empresários, médicos, atores, exploradores, corajosos e auto determinantes, enquanto enxergam as mulheres como sua mera companhia, a qual não tem muito a oferecer senão aspectos eróticos, domésticos ou reprodutivos.
Como o instagram contribui para essa qualificação dos corpos das mulheres?
Exatamente sob esse raciocínio que são exibidas as moças em páginas como a de Dan Bilzerian, que ganhou destaque nas últimas semanas pela indignação da comunidade feminina sobre o conteúdo por ele postado.
Ao apresentar mulheres permeio a um cenário de bens materiais, esse tipo de usuário ressalta a despersonificação da mulher, anulando sua identidade, intelectualidade e dignidade. Elas tornam-se objetos inanimados em meio a todos os outros elementos de um lifestyle, cujo compartilhamento pretende única e exclusivamente despertar a cobiça e ambição de seus seguidores. Assim, quem o acompanha passa a admirar e desejar suas festas, seus artigos de luxo e suas viagens sobre o mesmo viés em que deseja a mulher exposta na foto: como um objeto de condecoração.
Objetificação do corpo feminino x Liberdade de expressão da mulher
Ressalta-se que não é válido equiparar a exposição de corpos femininos por páginas como a de Bilzerian com postagens feitas pelas próprias mulheres de si mesmas. O intuito da presença feminina nas imagens de Bilzerian não é por admiração ou simpatia — como normalmente nos sentimos quando compartilhamos fotos com alguém — e sim por exibicionismo. Se usuários como ele apresentassem a figura feminina de forma honesta e verossímil, demonstrando uma relação de respeito e confiança entre a modelo ali representada e quem fez a postagem, a interpretação seria diferente. No entanto, o que se vê são mulheres colocadas em contextos irreais e acessórios, de forma a reprimir suas individualidades, em uma realidade muito diferente da qual a mulher compartilha uma imagem de si mesma, simplesmente porque — pasmem! — ela achou a foto bonita.
Novamente, Naomi Wolf trata dessa questão muito bem, quando insere que “não precisamos condenar o desejo, a sedução ou a atração física – precisamos apenas rejeitar a manipulação de natureza política”. Ou seja, consta avaliar o contexto em que corpos são expostos, valorizando a demonstração legítima da mulher, e negando a competição, a hierarquia e a violência.
Quais os efeitos da objetificação da mulher sobre a cultura da violência doméstica?
Sendo assim, quando a personalidade da mulher é anulada, reduzindo-a em um patrimônio ou uma coisa, ela é relacionada ao conceito de propriedade, que, por sua vez, se relaciona ao conceito de domínio.
A saber, em termos jurídicos, o domínio é o vínculo material de submissão de uma coisa ao seu titular, por meio do exercício das faculdades de usar, gozar, fruir, dispor e reaver.
Logo, a inserção de corpos femininos na mesma dimensão que bens materiais resulta na ideia de que o vínculo entre homens e mulheres ocorre sob uma arcaica lógica na qual elas cumprem um papel de submissão e servidão àqueles.
Por conseguinte, torna-se implícito aos homens que as mulheres exercem a função de atendê-los em suas expectativas e necessidades.
Nessa perspectiva, a violência doméstica perpetua-se. Isso porque, sob o ângulo da suposta submissão da mulher, quando a cultura masculina encara situações nas quais entende que a mulher não atendeu suas ‘obrigações’, seja em atos comissivos ou omissivos, surgem sobre os homens os sinais de frustração e quebra de expectativa, levando-os à fase 1 do ciclo de violência doméstica: o Aumento da Tensão. Nessa fase, o homem demonstra tensão e irritabilidade por razões insignificantes, advindas de falsas expectativas sobre o cumprimento da função da mulher enquanto subordinada. O não atendimento às necessidades criadas na égide mental masculina, no contexto de sua posição dominante, seria a eles inadmissível.
Em seguida, a fase 2 do ciclo da violência doméstica é o Ato de Violência. Nela, a falta de controle do homem sobre suas próprias frustrações, já explicadas acima, o conduz ao ato violento. Novamente, esse tipo de conduta está relacionada à visão de propriedade sobre a mulher, de forma a tornar implícito certo arbítrio masculino sobre a mulher. Conforme o que ensina Marilena Chauí, o Ato de Violência é a corroboração da objetificação da mulher, na medida em que a violência nega o semelhante e o trata como ser desprovido de razão, vontade, liberdade e responsabilidade.
A tipificação penal e os crimes relacionados aos efeitos da objetificação feminina
A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) dispõe cinco tipos de violência: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. Nas cinco diferentes categorias, é possível associar a mentalidade de domínio masculino com a denotação das mulheres em submissão e servitude. A título de exemplo, o crime de estupro (tipificado no art. 213 do Código Penal), ou a importunação sexual (inscrito no art. 215-A do mesmo dispositivo), inferem a mesma interpretação dada à mulher por seu agressor: a de um instrumento de prazer; uma coisa; um objeto.
Ademais, a lesão corporal (art. 129 do Código Penal), a ameaça (art. 147 do Código Penal) e a perturbação da tranquilidade (art. 65 da Lei das Contravenções Penais), traduzem a mentalidade da cultura masculina sobre a manutenção da mulher em servir ao homem como ele deseja, espera e exige.
Por essa razão, quando o consumo de corpos femininos objetificados cresce, contribui-se para a ascensão da lógica que revoga a individualidade da mulher e resume sua finalidade a cumprir com prazeres, necessidades e desejos masculinos. Consequentemente, por esse raciocínio de cunho patriarcal e machista, a violência doméstica é favorecida.
Infelizmente, o cenário dessa violência não é de redução. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no último levantamento de registros durante a pandemia da Covid-19, houve um aumento de 22,2% nos números de feminicídio, entre março e abril, comparado ao mesmo período de 2019.
A pandemia, junto ao contexto de confinamento decorrente do isolamento social, têm confirmado que estamos muito longe de uma realidade em que a violência de gênero é a exceção. Enquanto as mulheres continuarem sendo equiparadas a objetos; o combate ao domínio masculino não for genuíno; e as pessoas prosseguirem coniventes com a inserção feminina em caracteres de subordinação, elas seguirão vivendo o pesadelo de serem agredidas, perseguidas e mortas por serem simplesmente mulheres.