O Estado é genocida, mas a sociedade é sádica
Que o Estado brasileiro possui um projeto genocida, tendo como alvo principal a população negra, jovem e masculina já está posto. Ainda que seja negado por muitos que defendem que o Estado cumpre uma simples função de segurança pública, enquanto aterroriza diariamente a vida de mais da metade da população. Mas e a sociedade brasileira? Bom, a sociedade brasileira é vergonhosamente sádica.
Em “Necropolítica”, o filósofo camaronês Achille Mbembe elabora sobre a capacidade do Estado em ditar quem pode viver e quem deve morrer. A soberania estaria vinculada ao controle da mortalidade. No entanto, Mbembe não exime de responsabilidade uma sociedade que teria se reconciliado com seu ethos racista, que circula livre, sem nenhuma inibição.
O reconhecimento do papel da sociedade, que termina por validar o projeto genocida do Estado, é essencial e urgente. A comoção com as mortes de crianças negras é compartilhada por muitos. Afinal, é quase uma obrigação. Mas e depois que essa criança cresce abandonada pelo Estado? Então a sociedade passa a desejar, de maneira sádica, a sua morte.
Esse sadismo não surpreende se lembrarmos que somos uma sociedade fundada sobre a prática da violência contra os corpos negros. Brás Cubas, “o menino diabo” da obra de Machado de Assis, narra com orgulho suas travessuras de criança. Por exemplo, um dia quebrou a cabeça de uma escrava que lhe negou uma colher de doce de coco. Nos outros dias, montava a cavalo sobre “um moleque de casa” e quando esse gemia “ai, nhonhô!”, Brás Cubas retrucava “Cala a boca, besta!”. E o pai que o repreendia em público por formalidade, lhe cobria de beijos em particular.
É verdade, não somos mais esse Brasil colonial. Mas apenas porque a violência contra o corpo negro e contra qualquer outro é proibida por lei, ou melhor, é monopólio do Estado – ainda que linchamentos nãos sejam raros. Afinal, somos o país que se reuniu em frente à televisão para acompanhar a morte de Willian Augusto da Silva, que sequestrou com uma faca e um revólver de brinquedo um ônibus na Ponte Rio-Niterói. Não pretendo entrar no mérito sobre a ação da polícia neste texto, o que estou apontando é que a morte de Willian se tornou um espetáculo nacional.
Lembram do governador Wilson Witzel aterrissando toscamente de helicóptero para comemorar a morte do garoto de 20 anos? Lembram dele anunciando que “a mãe está muito abalada, se perguntando onde ela errou”? Como se o filho fosse resultado de um fracasso individual da mãe e não de um Estado que falha, intencionalmente, com a juventude negra todos os dias. E não apenas de um Estado fracassado, mas de um país que parou para assistir e para desejar a transmissão de sua morte na TV.
Não adianta se comover e acusar o Estado de genocídio quando ele mata crianças negras e depois torcer pela morte dessas mesmas crianças quando elas crescem. E aos que não torcem sadicamente pela morte de “sequestradores de ônibus” frente a TV, também não adianta sermos os “sonsos essenciais” de quem falou Clarice. Para que “minha casa funcione”, para que minha vida de privilégios continue como sempre foi, “exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa”.
Mas não adianta me fingir de sonsa e acusar apenas o Estado, quando, não apenas no fundo, mas já no princípio de minha alma, sei que a violência contra o outro é também culpa minha. Não adianta me fingir de sonsa e me indignar por alguns dias, apenas porque do prédio onde moro não se escutam os tiros que revoltam.